A destruição de livros começa na Suméria: Quando a Memória da Humanidade Arde em Cinzas
“Não é preciso queimar livros para destruir uma cultura. Basta fazer com que as pessoas deixem de lê-los.”
— Ray Bradbury, Fahrenheit 451
A história dos livros é também a história de sua destruição.
Muito antes das bibliotecas de Alexandria ou dos grandes arquivos medievais da Europa, a humanidade já escrevia — e já queimava. Os primeiros livros surgiram na Suméria, há mais de 5.000 anos, na antiga Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates. Lá, em cidades como Uruk, Nippur e Ur, os sumérios moldaram tabuletas de argila, gravaram símbolos cuneiformes com instrumentos de osso ou cana e criaram as primeiras bibliotecas conhecidas.
Mas quase tão rápido quanto nasciam, esses livros começavam a desaparecer.
Parte se perdeu naturalmente — argila quebradiça, inundações devastadoras, o tempo implacável. Mas uma enorme parcela foi destruída intencionalmente: por guerras, pilhagens, reciclagem forçada, ou por pura vontade de apagar ideias. Os registros não deixaram dúvidas: destruir a cultura do inimigo era uma tática de guerra. Cidades-Estado sumérias queimavam templos e bibliotecas umas das outras. Tabuletas eram transformadas em tijolos ou atiradas em rios. O conhecimento era visto como arma — e precisava ser silenciado.
Em 1924, escavações no templo da deusa Inanna revelaram as mais antigas tabuletas preservadas, datadas de 4100 a.C. a 3300 a.C., muitas delas quebradas, pulverizadas, carbonizadas. Com elas, fragmentos de sabedoria, de mitos, de ciência... tudo perdido.
A destruição dos livros: um padrão histórico
A Suméria foi só o começo. A destruição de livros é uma ferida constante na história da humanidade.
Alexandria, com sua lendária biblioteca, teve incêndios sucessivos — atribuídos a Júlio César, à perseguição cristã e às guerras islâmicas. Resultado: milhares de obras desapareceram para sempre.
Na Inquisição, livros considerados heréticos eram lançados às chamas em praças públicas.
Em 1933, os nazistas promoveram uma das queimas de livros mais simbólicas da era moderna, destruindo obras de autores judeus, marxistas, pacifistas e "indesejados".
Durante a Revolução Cultural na China, milhões de livros foram queimados para erradicar o passado “burguês”.
Em 2001, os talibãs queimaram livros e destruíram bibliotecas no Afeganistão, apagando séculos de cultura local.
E em 2003, com a invasão do Iraque, inúmeros arquivos históricos da antiga Mesopotâmia — incluindo milhares de tabuletas sumérias — foram saqueados ou destruídos.
A frase de Ray Bradbury em Fahrenheit 451 nunca foi tão verdadeira: não é preciso fogo literal. Basta que a leitura se torne irrelevante para que uma civilização comece a se apagar.
Escribas, templos e a memória em argila
Na Suméria, os livros eram tão sagrados quanto os templos. Os zigurates, monumentos escalonados que dominavam o horizonte das cidades, eram feitos do mesmo barro que moldava as tabuletas. Os escribas, sacerdotes do conhecimento, oravam à deusa Nidaba antes de escrever. Guardavam saberes sobre astronomia, flora, matemática, mitologia — eram verdadeiros arquivistas da existência.
Bibliotecas como a de Lagash, Ur, Fará e Kis continham textos de poesia, provérbios, magia, astronomia, economia. Nelas encontramos os primeiros catálogos, os primeiros nomes de autores (como Enkheduanna, filha de Sargão de Akkad) e até sinais de organização literária. A ideia de um livro com título, autor e revisão editorial já existia há 4 mil anos.
Mas quase tudo virou poeira.
A arqueologia estima que mais da metade das bibliotecas sumérias foi destruída. Algumas ainda estão enterradas. Outras foram perdidas para sempre. E isso nos leva a uma conclusão inevitável:
Toda vez que um livro é destruído, uma civilização sangra.
O fogo, o tempo, o esquecimento — todos são formas de apagar a história. Mas nenhuma tão eficiente quanto o desprezo pelo saber. Bradbury previu um futuro em que as pessoas simplesmente param de ler. E talvez esse seja o maior incêndio de todos.
Se quisermos preservar o que somos, precisamos preservar o que sabemos. E os livros — físicos ou digitais — são as últimas chamas que ainda iluminam nossa memória coletiva.
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